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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Resposta ao tempo

Imagine que você resolvesse discordar do tempo. Como assim, discordar do tempo? Assim. Discordar do tempo. Não estou falando de algo como “arrumar o relógio errado”, para discordar do tempo. Chegar na cara do tempo e dar uma moral... Opa, mas ninguém te disse que o tempo tem uma cara? Muito menos que o tempo conversa? Nas mitologias antigas poderia ter, o que seria o caso de Chronos, o grego, e Saturno, o romano, os deuses clássicos do tempo. Porque as mitologias já foram visões de mundo bastante levadas a sério para dar conta de explicar as coisas naturais, ou simplesmente de admitir a existência de coisas incompreensíveis em sua natureza.

Em toda a sua grandeza física, o tempo, em termos absolutos, passa; e nós fenecemos. O tempo não perdoa nada nem ninguém. Em sua dimensão metafísica e filosófica, o tempo se torna juiz e executor de diversas penas e graças, tanto para punição como para redenção, respectivamente. Há muitos ditados populares sobre o tempo, muitos deles sábios, inclusive. “O tempo tudo cura”. “O tempo mostra a verdade”. O tempo isso e o tempo aquilo. Até aquele “água mole em pedra dura tanto bate até que fura” é um ditado que fala sobre o tempo, no fundo, e não sobre água e muito menos sobre pedra. Explicitando o sentido, o ditado aí diz que os efeitos da erosão são só uma questão de tempo. O tempo é tudo e tudo é uma questão de tempo.

Dividimos o tempo. Calculamos o tempo. Contamos o tempo. Em algumas situações, esperamos o tempo passar. Em outras ocasiões, torcemos para que o tempo não passe. Pouca gente sã ousaria dizer que resolveu, assim como quem diz que resolveu encarar o chefe e pedir um aumento, dizer que chamou o tempo no lero-lero, que resolveu bater um papo sério com o tempo. Coisa de louco isso seria. Mas ainda bem que temos, na herança de uma tradição que vem desde as mitologias, passando pelo ditirambo e várias outra coisas, a poesia e a canção. E exatamente aí, no fazer poético que não deve satisfação ao mundo como ele é, ou como a maioria de nós acha que ele é, que o poeta, em sua inspiração e graça, põe-se a dialogar com o tempo.

A música Resposta ao Tempo é uma composição de Cristovão Bastos com letra de Aldir Blanc. Eu só conheço essa canção cantada pela Nana Caymmi. Podem haver outras, mas isso não vem ao caso agora. Deixemos isso para outro tempo. A idéia geral dessa canção, à primeira vista, é bem essa mesma: o eu-lírico, que se apaixona e não vê o sentimento passar, tal qual faz o tempo, chama-o para confrontar-se ele, o eu-lírico, que não passa, com ele, o tempo, que passa e apaga tudo:


Resposta ao Tempo

Batidas na porta da frente, é o tempo
Eu bebo um pouquinho pra ter o argumento

Mas fico sem jeito, calado, ele ri
Ele zomba do quanto eu chorei
Porque sabe passar e eu não sei

Num dia azul de verão sinto o vento
Há folhas no meu coração, é o tempo

Recordo um amor que perdi, ele ri
Diz que somos iguais, se eu notei
Pois não sabe ficar, e eu também não sei

E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro sozinhos

Respondo que ele aprisiona, eu liberto
Que ele adormece as paixões, eu desperto

E o tempo se rói com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor pra tentar reviver

No fundo é uma eterna criança

Que não soube amadurecer

Eu posso, ele não vai poder me esquecer


Claro, toda letra interessante tem, via de regra, algum aspecto intrigante que talvez nem tenha sido pensado pelo seu autor. Isso pertence a quem lê e interpreta, muitas vezes. Nesse diálogo com o tempo pode ser, em princípio, o ainda convencionado chamar o eu do poema de eu-lírico. Até alguns dos primeiros versos tudo bem. O eu-lírico é alguém que se apaixona, não deixa que o sentimento passe, ao passo que o tempo passa e apaga... apaga a memória, apaga a história, etc.

Há três momentos na música. O primeiro, em que o tempo ganha a disputa (“porque sabe passar, e eu não sei”). O segundo em que eu-lírico e tempo se igualam, pois o primeiro até perdeu um amor que recorda e, como o tempo, “não sabe ficar, e eu também não sei”. E, por fim, o terceiro momento, em que o eu-lírico dá um nó argumentativo no tempo e anuncia sua vitória por empate, mais o surrender do tempo, em relação ao fazer poético. Opa! O que eu disse?

Muito cuidado nessa hora, principalmente porque o argumento aqui é complicado, e o sentido a se produzir é frágil e delicado. Deu-se a passagem do eu-lírico, personagem que dá voz ao poema, à voz própria do poeta. A questão intrigante é, naquela estrofe que diz – “respondo que ele aprisiona, eu liberto / que ele adormece as paixões, eu desperto” – perguntamo-nos o que ou quem afinal é o “eu”? Na impossibilidade de ser poeta e eu lírico ao mesmo tempo (e isso é uma loooonga discussão), acho que é necessário anunciar simplesmente pela via interpretativa que segue que o eu-lírico cede espaço ao poeta; não necessariamente ao poeta, com endereço e CPF, mas o poeta mítico do fazer poético. E o poeta se anuncia no eu-lírico. E não é mais que o tempo seja tudo e que tudo seja uma questão de tempo, mas de linguagem. Porque o poeta constrói na linguagem. O tempo e tudo mais, o que se sente, o que se descreve, o que se supõe, tudo está na linguagem. E tudo isso pode, ou deve, virar poesia.

Senão, o que desperta as paixões mais do que a própria poesia? Não tenho dúvida disso. Não basta haver uma pessoa que nos encante e por quem nosso coração bata mais forte. O sentimento que for, uma vez que seja típico do humano, precisa ser feito em linguagem, para se tornar vivo e visível e verdadeiro. Desde a crença até a ciência, na humanidade, só existe o que é narrado, só pode existir o que pode ser narrado.

E aí, nessa Resposta ao Tempo, está a nossa suposta “superioridade” da poesia, da linguagem, em relação ao tempo. O tempo passa, a poesia fica. O que atrapalha é justamente a inconsistência da memória, sujeita ao erro humano, que desafia até a lógica do tempo e a (in)constância da linguagem, como es mejor el verso aquel que no podemos recordar...



Até a próxima!

Luis Felipe


P.S. O verso em espanhol é da canção Vete de Mi, dos compositores Homero Aldo Exposito e Virgilio Hugo Exposito, uma faixa do CD Fina Estampa, de Caetano Veloso.

2 comentários:

Hugo Leonardo Mercês disse...

Parabéns pela análise da música Resposta ao Tempo. Descobri recentemente esta canção e ainda estou trabalhando a significância dela para mim.

A parte do texto que discorres sobre a necessidade de fazer do sentimento linguagem pareceu-me de grande sensibilidade. Saramago trabalha muito essa questão em sua obra.

Sucesso!

Luis Felipe R. Freitas disse...

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